No topo da Serra de Montejunto, 600 metros acima do nível do mar, virada a norte, numa zona fria e húmida ergueu-se a Real Fábrica do Gelo. Durante cerca de 120 anos dali saiam blocos de gelo que refrescavam a corte e, mais tarde, os cafés mais chiques de Lisboa. Em 1850, com a invenção do frigorífico, entrou em declínio. Se não fosse o eletrodoméstico, seriam as alterações climáticas a ditar o seu fim.
Texto de Marina Almeida | Fotografias de Orlando Almeida/GI
Este sítio estava condenado a derreter-se na memória coletiva. Durante mais de cem anos, nos tanques da Real Fábrica do Gelo, solidificou a água que refrescava os caprichos reais, de bebidas frescas a sorvetes. Era um sítio de trabalho duro, entre finais de setembro e fevereiro. Durante as frias noites do alto de Montejunto, os neveiros retiravam o gelo dos tanques, transportavam-no às costas em pesadas cestas e acondicionavam-no nos silos de armazenamento. Ali ficariam até junho, altura em que os blocos de gelo seguiam serra abaixo, até à Vala do Carregado, para seguirem durante a noite, pelo rio Tejo, até Lisboa. Funcionou até à invenção do frigorífico, nos finais do século XIX, altura em que ficou entregue ao mato e ao abandono. Até um dia um professor de História do liceu ter despertado interesse de um bando de miúdos curiosos. Entre eles estava Carlos Ribeiro, hoje um dos guias daquele local, único no mundo.
Estamos em junho, e Carlos não dispensa um casaco. No alto da Serra de Montejunto continua a fazer fresco, apesar de já não ver gelar água naqueles tanques há uma década. Lembra-se da aula de História na Escola Secundária do Cadaval que desencadeou uma bola de neve. “Tínhamos uns 15, 16 anos. Ficámos todos interessados em conhecer o espaço. Chegámos a casa, perguntámos aos pais e aos avós, eles lembravam-se dos tanques, mas não sabiam a história da fábrica. O nosso professor era um professor à antiga, e um dia marcámos um acampamento para conhecermos a fábrica do gelo”, conta. Quando chegaram ao local, não conseguiram entrar devido ao mato que se instalara num fim de uma era. Saíram os homens, a natureza tomou conta do local ao longo de um século. Os miúdos não conseguiram ver grande coisa, mas tiveram uma certeza: “aquilo era demasiado importante para ficar naquele estado”. Organizaram-se, fundaram o Grupo dos Amigos da Fábrica do Gelo, juntaram-se ao grupo de espeleologia local e dedicaram fins de semana e feriados a limpar o espaço. A Real Fábrica do Gelo que hoje se desvenda aos olhos do visitante (parece uma capelinha, mas não é), nasceu desta curiosidade. Depois, a autarquia do Cadaval percebeu a sua importância e iniciou um caminho para a recuperação, musealização e classificação do conjunto de património industrial. Em 1997, foi classificada como Monumento Nacional.
A Real Fábrica de Gelo que hoje se desvenda aos olhos do visitante (parece uma capelinha, mas não é) renasceu graças à curiosidade de um grupo de jovens. (Fotografia Orlando Almeida/Global Imagens).
Carlos Ribeiro não esconde o orgulho e rapidamente se embrenha nas explicações com que dá vida a um conjunto de estruturas estranhas aos olhos contemporâneos. O complexo é dominado pelos 44 tanques de pedra de pouca profundidade onde se congelava a água destinada a refrescar as bebidas reais (e, mais tarde, a ser vendido como produto de luxo entre os “cafés chiques”). A moda veio de Espanha, no reinado de Filipe II. A neve que abastecia Lisboa inicialmente era proveniente das serras da Lousã, da aldeia do Coentral, onde existiam sete poços. Com o aumento do consumo, a procura alargou-se às famílias mais abastadas, bem como ao Hospital de Todos os Santos, passando a ser usada para fins medicinais. Era necessário dar resposta à demanda (até porque a neve da Lousã tinha 50% de perdas no transporte pelo Rio Zêzere) e em 1741 foi mandada construir a Real Fábrica do Gelo, por iniciativa de três sócios – um espanhol, um italiano e um francês.
Era uma tarefa dura esta de fazer gelo. Dos poços e dos tanques de armazenamento, a água da chuva era enviada para os 44 tanques de congelação, com recurso a um sistema de nora movido por animais.
A escolha recaiu na Serra do Montejunto devido às condições climatéricas e por ficar mais perto de Lisboa. “A obra demorou cerca de seis anos e custou 40 a 45 mil cruzados, um valor exorbitante para a época”. Carlos Ribeiro explica que a unidade estava dividida em dois setores – o da produção de gelo e o de armazenamento – e tem pormenores construtivos muito avançados. Por exemplo? No fundo do enorme silo de armazenamento principal, em pedra (tem dez metros de profundidade por sete de largura), era colocada uma grelha de madeira sobre um conjunto de pedras salientes, para o gelo que derretia não ficar em contacto com o restante bloco. Além disso, no fundo do silo existia um dreno, que escoava essa água para o exterior.
Os blocos de gelo viajavam de noite até Lisboa para abastecer a Casa Real e os cafés chiques. (Fotografia D.R.)
Era uma tarefa dura esta de fazer gelo. Dos poços e dos tanques de armazenamento, a água da chuva era enviada para os 44 tanques de congelação, com recurso a um sistema de nora movido por animais. A água distribuía-se então por gigantescas couvettes a céu aberto, para a natureza tratar de a congelar. Isso acontecia de noite, quando as temperaturas mais baixas eram alcançadas. Nessa altura, o guarda da fábrica descia à aldeia de Pragança e, de corneta em riste, acordava os homens que se iriam dedicar ao labor de tirar os enormes blocos de gelo dos tanques, transportá-los às costas e compactá-los nos silos. Carlos Ribeiro explica que tudo isto tinha de acontecer antes de o sol nascer. “Era um trabalho de escravatura, feito de noite, com temperaturas baixas, para que o rei se pudesse deliciar com bebidas geladas”, diz, confessando que muitas vezes se põe a pensar no que sofreram os neveiros, “mal vestidos e mal calçados”. Os homens – diz – dormiam atentos ao som da corneta, porque só os primeiros a chegar, depois de subir a pé pela serra acima, conseguiam o trabalho. Muita desta memória foi recolhida junto dos descendentes dos neveiros, em Pragança, no sopé da serra. Foi uma atividade que durou mais de um século e que ainda hoje está fixada numa frase que os mais antigos dizem: Quando o silo grande estava cheio de gelo, era o silo do lado [mais pequeno] que estava cheio de moedas de ouro.
Carlos Ribeiro é um dos guias da Real Fábrica de Gelo. (Fotografia Orlando Almeida/Global Imagens)
Hoje em dia, mesmo que não houvesse congeladores, a fábrica já não podia existir. Um dos tanques do conjunto ainda retém a água das chuvas, que agora ali fica meses até se evaporar. A última vez que gelou foi há dez anos, e não na totalidade – ou seja, nos seus 12 centímetros de altura – relata Carlos Ribeiro, espectador do aquecimento global no cimo de Montejunto.
Mas nos finais do século XIX, início do século XX, dos 44 tanques saíam estes enormes blocos de gelo que se armazenavam nos silos durante o inverno. No início do tempo quente, desencadeava-se a monumental tarefa de os transportar intactos ao longo de 50 quilómetros. A primeira fase do processo acontecia numa zona da também chamada fábrica de neve, junto aos silos, em que os homens cortavam o gelo em enormes paralelepípedos, evolvendo-os em palha e serapilheira. Ficavam no silo de expedição, até seguirem para o dorso dos burros que os levava serra abaixo. O guia lembra que não existiam estradas, os animais seguiam por carreiros e só no sopé da serra estavam as carroças ou carros de bois, em que depois se acomodava o gelo até à Vala do Carregado. A partir daqui, os blocos de gelo (envolvidos em palha e serapilheira) seguiam pelo Rio Tejo, durante a noite, até ao Terreiro do Paço, nos barcos da neve, num trajeto que demorava 12 horas. “Aqui era levado para a Casa da Neve, um local que pouco tempo depois foi o Martinho da Arcada, e a partir daqui seguia para a corte, para os cafés e para o Hospital de Todos os Santos, localizado na atual Praça da Figueira”.
Era na Real Fábrica do Gelo que se armazenava a água que depois congelava e era mantida nos enormes silos antes de seguir para Lisboa. (Fotografia Orlando Almeida/Global Imagens)
Destes tempos antigos, restam alguns vestígios na Baixa de Lisboa, nomeadamente na fachada da antiga Pastelaria Pomona (Rua da Prata, 113) ou o Café Gelo, no Rossio – alguns dos “cafés chiques” que Carlos Ribeiro referia. Também no Palácio Nacional da Ajuda se conservam alguns dos recipientes usados para “servir as neves” à corte, como as taças ou baldes de gelo em vidro, cristal, porcelana ou prata, revela Maria João Burnay, conservadora de vidros do palácio. A historiadora de arte tem estudado este tema e conta que na corte da rainha D. Maria Pia, o sorvete não era uma sobremesa, antes “era servido entre o prato de carne e de peixe, para cortar o sabor”. O gelo usava-se também nos frapés, para gelar o vinho branco ou o champanhe. Era conservado ao longo de todo o ano em geleiras, de que não há atualmente registo no acervo do palácio. Entre os imensos serviços que a rainha comprava para a Casa Real, estão contempladas as peças para servir as “neves”, com o seu monograma. Uma delas, atualmente no Palácio Nacional de Sintra, mostra-se no Centro de Interpretação da Real Fábrica do Gelo.
Carlos Ribeiro explica que o fabrico e transporte de gelo foi sempre feito por particulares, apesar de o nome da fábrica poder induzir em erro. Em 1782, o espanhol Julião Pereira de Castro, que explorava os poços de neve do Coentral, ficou também com a fábrica de Montejunto, garantindo desta forma o monopólio da exploração do gelo em Portugal. Além disso, o neveiro da casa real e a sua família eram proprietários de grande parte dos cafés da baixa de Lisboa. A sua filha e neto sucederam-lhe no negócio de fazer gelo natural.
A Real Fábrica do Gelo serviu a corte de D. João V e, depois, de José I. Este último fez aprovar uma lei que dá plenos poderes ao transporte do gelo e os almocreves tinham via verde até Lisboa: era urgente manter a neve intacta para refrescar os palatos reais.